Onde há integridade

Onde há integridade

 – Sinto muito – disse, de olhos perdidos para o cimo -, mas ainda sinto falta dos meus.

Falou alto, para ela mesma. A praia estava vazia e, não fossem os dois sentados na areia, sentiria-se o mar mais gelado, porque o sol não fazia mais fogo no canto dos olhos e, na outra direção, a noite já havia caído por inteiro. As nuvens se amontoavam mas não indicavam tempestade, ao menos assim ela sentiu. Já estivera perdida em tormentas outras vezes, e era capaz de identificar a proximidade de um daqueles temporais que colocam medo nos experientes pescadores de anchova, cujos barcos ficavam no fundo da baía, onde o rio ficava mais largo por alguns metros, depois de cortar a terra do interior do estado e antes de dividir a areia profunda em duas praias de nomes díspares.

O rio, negro e farto, bravio do trazer a vida intensa do interior, de mulheres intrépidas fazendo serviço enquanto os homens pegavam siris e caranguejos nas pedras das margens do rio, e as crianças brincavam na beira enquanto que pelos ouvidos perdia-se o ralho das mães gritando lá da porta da casa ‘não vai p’ro fundo não, moleque!’; ele cortava a praia, esse rio, e certa vez ela tentara atravessá-lo a nado. Os músculos cansaram-se rapidamente e ela não tocava os pés no chão. Não houve desespero senão que o corpo foi tomado por uma mistura de paz e alívio – deixou-se levar com a frase sussurrando nos ouvidos – ‘quem sabe nadar já é do mar…’

Ele abriu os olhos com ar de quem já conta histórias demais. A barba comprida de neve coçou da areia que o vento trazia; o livro estava aberto ao seu lado em uma página onde ele ainda não chegara. Ele não quis ver. Fechou os olhos e, com eles cerrados, bateu o livro com uma das mãos, apertando com os dedos a capa dura vinho com letras prateadas, cuidando para que o vento não o escancarasse novamente.

A resposta não veio porque o cochilo o alvitrou apenas um sussurro; ademais, não havia sido pergunta, a dela, senão que havia falado consigo. Ela precisou virar o pescoço para trás para mirar uma estrela bem sobre a sua cabeça; o chapéu lhe caiu com seu movimento e foi-se macular na areia. Sentiu o sopro nos cabelos e achou que o chapéu, naquele instante, era desnecessário, por isso não o procurou perto das costas que ela mantinha impecavelmente alinhadas, apesar do desconforto da posição aflita.

Aflita era quando assim, de alma desnuda, mesmo com o mar adiante; havia muito entre ela e o oceano na praia vazia àquela hora. Fechava-se dentro dela mesma ainda que, às vezes, um murmúrio escapasse; o senhor tudo ouvia mas, até então, era ela quem geralmente lhe auxiliava nas dores do dia-a-dia, e por isso, ela matutava, ele não deixava o seu lado; precisando ela, dele, eram suas próprias as palavras que ouvia; como se o que dissesse batesse em um espelho e refletisse sobre ela. Ele a contemplava com carinho porque era essa a natureza dele. Não havia, entre eles, o medo do amor, do amor original. Essa era uma expressão dela, ‘amor original’, porque era esse o amor que ela sentia.

Amor original era o amor fraternal, por qualquer criatura, e demonstrá-lo para qualquer pessoa não lhe era viável, porque ela sabia que podiam confundir o amor original com uma outra espécie de carinho, o que também chamavam de amor. Aquele amor que o homem havia inventado. E aí, se ela demonstrava o seu amor, havia desprezo e havia ciúmes. Havia desconfiança e confusão. Mas ela não desistiu de demonstrar o amor original porque ela achava que, de onde ela vinha, era assim que tudo funcionava e ela não queria desaprender apenas porque estava longe de casa por certo tempo.

Ele sabia decifrá-la e por isso o amor funcionava bem entre eles. Ela sentia-se confortável porque ele entendia o único amor que havia nela. Não eram amigo e amiga, nem marido e mulher, nem pai e filha. Não eram nem ele e nem ela. Eles eram. E estavam felizes por serem.

É a primeira vez que percebo e converto as circunstâncias em autêntico aprendizado com antecedência. É do meu costume que faça isso apenas quando a lição acontecera; muitas vezes, nem o faço, ou compreendo muito, muito tempo depois… Há partes importantes a perder, mas não se perde algo sempre que se aprende, nem que seja somente a ignorância? A escolha, desta vez, é o que se deve aprender, e há duas opções evidentes. Se eu enxergo de muito distante, não parece haver dúvidas sobre qual aprendizado deixar entrar em mim. Mas à medida que o olhar fica mais próximo, percebo que ambos aprendizados baseiam-se em valores. Haverá ensinamento, não existem dúvidas; por vários motivos, não posso precisar qual será.

Com a rosa na mão, ela se levantou e foi jogá-la no mar. Ele apenas a acompanhou com um olhar terno, de quem sabe da dor do outro e não hesita em enfrentá-la. ‘Leva ela embora’ – pediu ao mar, jogando a flor com suavidade no meio das ondas – ‘que eu sigo depois’. ‘Esta’ segurou a outra rosa que tinha-lhe ferido o dedo com um espinho – ‘fica comigo, por agora’. A noite me acalenta, mas também me assusta. O entusiasmo é tanto que fere-me a iminência do apenas ponderar desistir dele, mas entusiasmo encontra-se o tempo todo, e o todo o tempo ele termina e eu desisto, porque sem entusiasmo não existe nada para se alcançar. Os filhos são o entusiasmo; o olhar brilhante sobre a pintura não terminada, as partes do livro não lido, o caminhar sob a terra dentro da caverna mais profunda que se conhece nesse planeta, com as estalactites que nunca terminam de serem formadas apontanto para as águas cristalinas no solo. Os olhos de se ver estão tão acostumados com a luz que, quando ela me falta, eu duvido de mim.

O senhor inesperadamente me explica:

– Eu lhe mostro a sua luz. E há outros como eu. Você precisa escutar.

Mas é ínfimo o meu sentir.

Há muito que os sinto tentando manipular o meu tempo. O tempo os tem como escravos, esperando que consigam o todo que vai ficar aqui, nesse lugar, e é precisamente esse um dos aprendizados que devo absorver, caso seja essa a minha opção – fazer necessitar desse todo. Muito pior! Fazer sentir que necessita-se desse todo. O senhor ao meu lado cochila com seu livro aberto no seu colo; as páginas vão virando com o vento e a areia enquanto meus olhos umedecem-se e eu cerro os dentes: recuso-me! Não há em mim uma célula do meu corpo que aceitaria o que me foi incumbido, já que eu mesma não acolho o que me é colocado nas mãos sem que eu tenha aceitado de bom grado, mesmo que de maneira inconsciente, porque no futuro hei de compreender. Eu conheço as manchas acastanhadas pelo corpo, os cabelos escurecendo os olhos e o grito encerrado na garganta, e foi-me árduo chegar mais limpa do que dantes à esta altura.

Entretanto, compreendo que não há integridade que nasça e se fortaleça sobre as nuvens. A água limpa jogada sobre ela mesma permanece limpa; se ela desce o morro, vai-se contaminar com os sujos da cidade e chega ao mar limpa novamente, é a integridade genuína da qual me refiro. Contra o vento permaneço caminhando, malgrada a dificuldade que faz muito mais do que desalinhar os meus cabelos, e chego ao que preciso alcançar. A areia bateu nos meus olhos e feriu meu rosto mas, ao final, o coração está puro. É o que preciso alcançar.

O senhor acorda com meus pensamentos altos, mas não abre os olhos. Consigo ouvir apenas a sua voz baixa, compassada:

– Eu lhe mostro a sua luz. E há outros de mim.

TS


68 Comentários em “Onde há integridade”

  1. Pingback: what is protonix
  2. Pingback: synthroid tirosint
  3. Pingback: celexa max dosage
  4. Pingback: bupropion abuse
  5. Pingback: celecoxib reviews
  6. Pingback: diltiazem 240 mg
  7. Pingback: lexapro 10 mg
  8. Pingback: .6 semaglutide
  9. Pingback: wegovy vs rybelsus
  10. Pingback: lasix glucose
  11. Pingback: neurontin lymphoma
  12. Pingback: flagyl giardiasis
  13. Pingback: buy generic cialis
  14. Pingback: shop for cialis
  15. Pingback: brand cialis 20
  16. Pingback: lee tadalafil

Comente!