A pluralidade da existência

A pluralidade da existência

Caminha hesitante em direção ao calhamaço para compreender profundamente os tempos dantes arraigados. Será que era mesmo tão díspar em determinadas condições? Precisaria – agora de forma consciente -, deixar de estar em instantes estabelecidos e abnegar ao seu respectivo espaço para que um alguém passe a direcionar o corpo nas venturas do tempo, amiúde sem ser obrigado a coletar – de uma certa maneira, porque nunca se deixa de existir – os frutos maturados da colheita em questão. As estrelas nas árvores diferem com os mesmos raios do sol porque a forma e a distância entre as folhas são desiguais. Desde quando há partes tão delimitadas pelas tempestades de outroras? Sabe que os temporais molham mesmo os sob os guarda-chuvas, e as ondas não atingem as rochas da costa com o mesmo vigor, mas não consegue conceber como certos tipos de circunstâncias são sustentados com o que lhe parece ser tão bruta coerência.

Fecha-se um ciclo. As crenças não são mais as mesmas – não existe mais a esperança de ver as árvores crescerem para o mesmo sentido das violentas rajadas de vento. Doravante há que deleitar-se no pleno aconchego de um lar habitado por mundos diversos, cada qual com a sua definição particular sobre como achar-se um indivíduo, esperando os átimos propícios para surgirem na superfície, provocados com constância por uma pintura caótica matizada de angústia carmim conforme as defesas são, uma a uma, arrepeladas para um poço profundo. E quando outros surgem afora, a discrepância da força que suscita as formas dos passos na areia é descomunal, como demasiado é o infinito para somente uma realidade. Refletem sobre suas motivações enquanto dirigem-se para o píer. Como se pudesse-se ler um imenso livro onde todos registraram as suas devidas contendas, apercebe-se claramente que a vivência se tornou um amontoado de alguéns que não reconhece de forma adequada quem são, senão que acreditam apenas que eles não são uns os outros.

Saíram da casa no dia vinte e oito de agosto; nem minuto mais nem menos do horário combinado. O rastro do andejar na orla da praia confundia-se com a areia fina deslocada pelo sopro fraco daquela noite. Uma corrente no pescoço, um velho par de óculos há pouco partido e um novo vestido – objetado por alguns – de flores de tons pastéis sobre um branco imaculado. Um chapéu cor de lavanda com fita roxa, os cabelos soltos levemente afagados pelo frescor do momento, uma sensação de não ser que prolifera-se múltiplas vezes no mesmo coração. Há os confiantes e cordatos, os sublimados, os de certo valor memorável – em virtude da maneira como estavam fadados a servir e fizeram-no com bravura – que há muito assimilaram a arte de combater as batalhas, obstinados em empurrar os deslocados para o fronte enquanto observam com olhar transigente: “eles necessitam aprender”. O pavor propaga-se como fogo em palha seca e arde os fragmentos do cerne de cada um na linha de frente com seus capacetes perfurados; alastra-se pelas mentes e os caminhos do cérebro uno, mas há resiliência suficiente para alguns. Para outros, não.

Existem pedaços de escritos rasgados em todo o assoalho de nogueira. A cicatriz é um inseto dolorido movendo-se sob a pele do antebraço; a órbita do globo, que girava com cautela, transformou-se em um circuito desnorteado e não há mais edifícios nem rodovias para serem notados porque muitas das perspectivas estão em devaneio agudo e não podem mais compreender o que não é fantasia. Nunca viu certos passados, mas é esse um malefício? Quando qualquer cenário o é? Estendem as mãos tocando a vidraça transparente e abrem a ventana com um golpe acurado. As folhas colidem com a parede do lado de fora, o vidro e as tábuas frágeis da janela espatifam-se no chão. Ao lado do armário de livros, repleto de exemplares que nunca leram, o espelho estilhaçado no dia anterior exibe imagens singulares que, ao mesmo tempo, revelam-se unificadas. Uma concepção que lhes beliscou o joelho e aparenta levar a apenas um destino, mas como pode-se levar apenas a um destino se existe tanta diversidade? Parece-lhes inconcebível.

O piano soou tão distante e potente que as notas mais graves foram trazidas pelo vento como um trovão, e falavam daquele que emudecia aos rostos em carne viva, rogando que as estações trouxessem-lhe lampejos benfazejos. Não se sabe quanto tempo permaneceram ali. Preferia ter dado o aval para que todos surgissem, mas o direito parecia não pertencer-lhe. O direito não cabia a ninguém, e percebeu-se isso nos primeiros minutos em que, blindados em neblina, houve a dúbia introdução. Decerto inúmeros optariam que houvesse somente o seu próprio reino florido, com o perfume original e longas hastes espinhosas – queriam ser irrefutavelmente integrais. A pluralidade da existência que gritava no par de ouvidos e se fazia perceber em várias mentes daquele corpo combalido transtornou a alma intensamente e esclareceu incontáveis passagens enigmáticas daquelas vidas. E a dor os conduziu de forma precisa ao lugar desejado: caminharam em silêncio por um extenso píer que invadia o mar e mergulharam com destemor. Todos, sem exceção, desapareceram à medida que o corpo perdeu-se na escuridão do oceano..

TS


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