Os carros de fórmula um e os baldes de tinta

Carro de Fórmula 1

Empurre. – disse – Eu não posso me mover, a menos que você me dê este impulso.

Havia tantos pedaços de tecido rasgados no chão, e ela os enxergava de tão alto, como se não precisasse mais do par de óculos, como se o cérebro tivesse aprendido tão bem a lidar com aqueles percalços mundanos que, mesmo as imagens borradas refletidas nos seus olhos, eles tornaram-se capazes de esclarecer com suficiente precisão. Ela podia montar um quebra-cabeças de onde estava, peça por peça, juntar côncavos e convexos, como se soubesse como tudo parecia antes de espatifar-se no chão. Os fatos estapeavam-lhe o rosto, porque ela era incrédula. Ou estúpida – estúpida, com certeza.

Sentou-se na borda do edifício, raspando os pés na parede, deixando marcas de borracha escura na tinta desbotada; era uma cena melancólica de inverno, onde o vento gelado lhe atiçava os cabelos e roubava-lhe a quentura do rosto, enrubescendo os lábios, e ela agarrava a borda do muro sobre o qual estava sentada com tanta força que as mãos avermelhavam-se, enquanto que os pés balançavam no vazio, pesados e indiferentes – era assim que os pensamentos funcionavam. Todos os dias, havia alguns poucos sóbrios, e havia aqueles que pareciam apenas surgir para que se criasse o desafio de serem domados. No fim do dia, ela quase deixava-se vencer, após as horas passadas em tentativas frustradas de colocar alguma organização sobre eles. Eles tinham um humor ácido, porém, esses pensamentos indômitos. Passeavam no cérebro como carros de fórmula um atravessando o olhar, borrões variados e difíceis de identificar, que iam jogando baldes de tinta sobre ela, numa rapidez tal que lhe bagunçava a análise de como ela devia pintar as aquarelas que iam-lhe aparecendo no decorrer do dia. Ela esperava que eles simplesmente se cansassem e decidissem funcionar como pensamentos normais, porque ela tinha escolhas a fazer – entre elas, pintar as aquarelas ou domar os pensamentos. As duas coisas não podiam ser feitas, junto de todas as outras, e desenhar os quadros sem que os pesamentos estivessem nos conformes, para ela, seria como tocar uma determinada música sem saber as suas notas.

Não se sabe por quanto tempo aquele seu pedaço irritadiço, parte perniciosa que há muito ela tentava evitar, martelou-lhe o pedido incessante, e nem quais estágios ela teve de derrotar antes de tal decisão. Quando foi encontrada, dias depois, ensopada da chuva do dia anterior, já não reagia. Não se sabia se havia alguma consciência dentro daquele cérebro. Eles a manuseavam como se ela fosse uma boneca de pano, como se nunca tivera vontades na vida e, além disso, mesmo com os olhos abertos apontados para um objeto ou outro par de olhos, ela apenas fitava um nada; o olhar trespassava tudo como se o mundo fosse invisível, e parecia focar-se em um fundo que apenas ela podia enxergar. Ao redor dela, murmurinhos concluíam que aquilo certamente havia sido travessura daqueles pensamentos zombeteiros que, em um momento, pegaram-na desprevenida, ou exaurida. Foi alguém que disse, em tom bem mais baixo, quase como se não quisera ser ouvido, que ela apenas queria ganhar tempo; queria apenas desvendar a sua própria harmonia.

TS


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