O sentir na estação

O sentir na estação

Não quis se apressar, mas apertou a pulseira do relógio no braço direito e checou o horário. ‘O tempo não existe’, pensou consigo. E, ainda assim, precisava estar lá às quatro.

Charley Patton estava tocando, mas os fones estavam caídos sobre as costas, escondidos atrás dos cabelos médios, de forma que ouvia apenas uma voz grave, bem baixa. A eternidade daquele momento a fez correr os olhos para o outro lado dos trilhos do trem. Um cão caramelo, um vendedor de chocolates, um pedinte. Centenas de passageiros ignoravam os três.

Do lado dela, um músico murmurava uma melodia triste em um velho saxofone, sentado, encostado em um pilar da estação. Estava sobre uma mala surrada e havia um chapéu no chão com algumas notas e moedas. Algumas pessoas paravam próximas a ele, ouviam o rapaz, mas ela não tinha certeza se ele realmente estava tocando para um público – parecia nem estar ali. Tinha o olhar perdido nos trilhos e as notas da canção pareciam ser escolhidas a esmo, mas o sentido que faziam estava levando uma moça de saia violeta a chorar. Aquela música poderia estar falando da morte de alguém, e a moça poderia estar de luto. Estar em uma situação cotidiana e recordar-se da sua dor é muito triste.

Estava em um pub, certo dia, após fazer uma apresentação musical. No fim da noite, quando as pessoas estão indo embora e algumas deixam as bebidas caírem no chão, havia uma jovem sentada em uma mesa, sozinha, chorando silenciosamente. Com as mãos, tentava fazer as lágrimas pararem de manchar o rosto, mas não conseguia contê-las.

Aproximou-se, perguntou se podia se sentar. A jovem respondeu pelo olhar marejado. Seguiu-se uma conversa sobre motivos, tristezas e esperanças, e a moça parou de chorar ao abrir seu coração.

Olhou novamente para o relógio e continuou sem pressa ao ver quinze para as quatro da tarde. O trem não aparecia. As pessoas pareciam impacientes. Havia um menino pequeno muito perto da linha amarela. A mãe estava cansada, segurava duas grandes sacolas. Olhava na direção de onde o trem chegaria. Alguém disse ‘cuidado com ele’, acenando para o povo que estava atrás dela. Ela passou uma das sacolas para a outra mão e agarrou a mão do menino. Como uma oriental, acenou com a cabeça, agradecendo o conselho. O rapaz ofereceu-se para carregar uma das sacolas para que ela pudesse segurar a mão do menino. Ela aceitou. Eu sorri.

Do outro lado dos trilhos, alguém terminou uma conversa no celular e entrou em pranto doído, uma contralto cantando belamente, com voz forte, alta, chorando a morte da mãe, da cidadezinha do interior, que vivia sozinha, já que a moça viera trabalhar em São Paulo, para ajudar a mãe a ter comida, uma moradia mais digna, uma vida melhor.

Muitos ficaram emocionados. Alguns a abraçaram. Eu queria tê-la abraçado. Quis abraçar a minha mãe.

O músico levantou-se e, deste lado, começou a acompanhar com seu saxofone a cantoria dolorida da moça. Eles não se conheciam, mas ambos sabiam falar o idioma musical. Ela dizia o quão doído estava sendo saber da morte da sua mãe. Ele estava dizendo que sentia muito.

A música ecoou pelos túneis dos trens e houve quem a ouviu em outras estações.

Seus olhos encontraram o relógio da estação: quatro horas. A moça parou de cantar. Limpando as lágrimas do rosto, foi caminhando em direção à saída da estação. O músico voltou a sentar-se, encostado no pilar, sussurrando com seu saxofone. O cão caramelo, o vendedor de chocolates, o pedinte. A moça de saia violeta. Ela.

Um senhor aproximou-se. Sem olhar para ela, ofereceu-lhe um lenço branco.

– A razão explica. – disse ele, observando os passageiros da estação – O sentir nos une.

TS


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