O piano

Piano antigo

Abriu a porta cuidadosamente, mesmo sabendo que o ato era, em si, inútil, pois as dobradiças daquela casa antiga estavam tão velhas e enferrujadas que rangiam a qualquer passar furtivo casa adentro; súbito vento soprando a primavera podia avisar as pessoas que alguém entrara; este, esperando ser bem-vindo, que de hostilidades já se enchia quando pisava-se no asfalto portão afora todos os dias.

Ouvia-se um ruído constante que vinha de algum lugar do mar, abafado pelas ondas da maré forte àquela hora, e ela tentava capturar com o pensamento o sonido tão bonito para dias como aqueles, onde esmaga-lhe a impressão de não saber onde pisar, ou o preocupar-se se dobradiças estão lubrificadas o suficiente para que não haja ruídos e que pessoas não sejam incomodadas nos seus afazeres das rotinas da vida.

Todos os móveis, cobertos de um lençol amarelado, branco em seus dias mais áureos, eram protegidos de um pó espesso que há tempos já tomava os beirais das janelas da casa. O piano havia sido esquecido, símbolo da casa de tristeza para seus moradores, quando, no entanto, apenas reproduzia a melancolia do seu tocador. As teclas altas confundiam-se com as outras, e nenhuma delas respondia mais ao seu respectivo som.

Cansada, de cabelos esbranquiçados penteados para o lado, pendendo sobre os olhos marejados, pareceu ver em frente ao piano quem outrora tirava melodias que pareciam conhecer as suas próprias mãos.

Foi em um inverno onde o sol aparecia pouco brilhoso entre as nuvens que ela passou por aquela casa, anos atrás, e não soube precisar o nome da sinfonia que chegava sorrateira aos seus ouvidos, mas compreendeu que quem a tocava estava há tempos desejando que aquelas não fossem as suas notas, ou a sinfonia da sua vida, e ela percebia que seria escrever à alguém do povoado vizinho com bonita caligrafia e sua fragrância suave na carta como aquela pessoa que tocava aquelas notas esparsas no piano, onde os acordes não precisavam correr para seguir a melodia, havia vindo de muito longe, mais distante do que a imaginação pode alcançar, e como sentia falta daquelas flores que ornavam o jardim da frente da casa, exalando o seu perfume para além dos vilarejos, enquanto ouvia o ruído da máquina de costura trabalhando calmamente em um suéter que nunca poderia ser vestido, com suas longas mangas e colarinho de diâmetro tão fino, mas que lhe encheria os olhos de alegria por ter peça tão bela nas mãos, costurados por quem, após tantos anos, não lhe conhecia as medidas, apenas o coração.

TS


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