Pedro,
Sei que sua admiração pelo Les Neuf Ciseaux já ultrapassou o nível fanático – (abstenho-me a dizer doentio); uma semana após a nossa discussão calorosa onde eu defendi que o primeiro álbum da banda é melhor do que o último, pois eles acabaram por se desvirtuar da sua idéia inicial, enquanto você me dizia que eles haviam apenas evoluído, sei que vai se sentir contente por saber que agora os admiro muito mais, garanto, do que você.
Explico: estava eu no aeroporto, de saída da cidade, enfrentando o atraso de um vôo que alcançou quatro horas quando, de repente, reconheci um rapaz sentado num dos bancos da fileira na minha frente. No momento não reparei que ele estava ansioso, angustiado e nervoso, provavelmente porque eu estava ansiosa, angustiada e nervosa, mas imagino, pela cena que veio a seguir, que aquela era a sua precisa condição. E, apesar dele estar sentado exatamente na minha frente, a alguns passos da fileira de bancos onde eu estava, e da minha memória tê-lo encontrado pelas suas linhas sinuosas e me avisado que era alguém que eu já havia visto, ela não me contou, porém, de onde ele vinha, de maneira que, após poucos segundos de observação indiferente, simplesmente deixei-o de lado e continuei com a minha fixação de vigiar o painel à espera do meu avião.
Cerca de quinze minutos depois, um vôo chegou e, do corredor de passageiros, saíram algumas dezenas deles. Uma pessoa se destacou daquele grupo, deixou-o, e andou em direção ao rapaz sentado à minha frente – nos últimos minutos, mesmo eu era capaz de perceber a sua inquietação, e eu estaria sendo gentil se dissesse que ele mudara de posição, enquanto sentado, apenas dez vezes. A menos que virasse seus olhos para o meu lado esquerdo, o rapaz ainda não tinha visão dos passageiros que saíam do corredor – mesmo assim, antes que a massa deles invadisse seu campo visual, um pouco à frente, avisando-o que uma nova remessa de passageiros chegara, ele virou a cabeça para sua direita e olhou diretamente para ela, como se sentira que ela se aproximasse. O sorriso que os dois pares de olhos abriram – sim, meu olho esquerdo virou-se para observá-la, enquanto o direito lutou para manter-se na reação do rapaz, provavelmente dando ao meu rosto uma expressão no mínimo curiosa – enterneceu meu coração e, romântica incorrigível que sou, você sabe, resolvi esquecer o atraso, o vôo e o painel, mandá-los para o raio que os partisse, bem como todos os pensamentos negativos que passavam pela minha mente naquele exato momento, pois eu estava antevendo minha feição de raiva e cansaço ao passar a chave na minha porta e perceber a desordem que eu havia deixado no apartamento, após sair às pressas para uma viagem cujos frutos não vi – concentrei-me apenas em assistir a cena.
Ele levantou-se rapidamente e encarou-a, até que ela ficou a apenas alguns poucos passos dele. Foi então que ele abriu os braços, e ela ali se alojou. Os olhos fecharam-se antes, eu percebi, do abraço apertado acontecer. Devo confessar que a sensação de conforto naquele abraço era tão grandiosa no raio que circundava os dois que mesmo eu me senti renovada e reconfortada. E permaneceram assim, no meio de um caos de gente chegando, partindo, gente irritada com os atrasos dos vôos e as vozes cavernosas, vociferando horários e nomes de cidades, escondidas em alguma sala secreta do aeroporto. Desligaram-se do mundo enquanto os corpos balançavam suavemente, como em uma dança, e qualquer um que assistisse a cena (apenas eu, aparentemente – com entusiasmo, alternava meu olhar entre todos à minha volta e o que acontecia a alguns passos de mim, esperando que alguém estivesse assistindo a cena com tanto interesse e ternura quanto eu; pois eu queria compartilhar a cena, usando um sorriso, com alguém de carne e coração) conseguia compreender que deviam estar há muito separados, e há quanto tempo não se viam, possivelmente trocando palavras apenas pelas gélidas experiências do telefone e da carta eletrônica, que nem o direito do perfume e o cheiro da caneta, que automaticamente transportam para o lar, existe.
Até que eles se distanciaram lentamente e observaram-se por alguns segundos, esperando ler no rosto um do outro os estados de espírito, e um jeito de apartar a saudade completamente e então – sim – veio o óbvio, o beijo. Aqueles dois, cavalheiro, eram o seu casal preferido, a vocalista do Les Neuf Ciseaux e o marido, cuja lembrança concreta me apareceu assim que os olhares dos dois se encontraram – uma foto que você me mostrara anos antes, do casal junto, confidenciando-me, com as lágrimas nos olhos que iam escapando e se perdendo no tecido da sua calça, sem trégua, depois de ser rejeitado por uma mulher de cabelos esverdeados cujo detalhe mais verdadeiro nos olhos era o acrílico das suas lentes de contato azuis, que queria um amor como aquele.
E então, quando meu olhar se perdeu da imagem dos dois abraçados, deixando o saguão, encarando-se com sorrisos e olhares em um momento que a saudade, em compaixão, proporcionou-lhes; e quando percebi que ele não era mudo e que ela não estava apenas demonstrando, em troca do silêncio do marido, que entendia que os gestos para ele eram mais importantes do que as palavras – pois durante todo o momento que se passou na minha frente, não trocaram uma só – eu percebi que a banda havia se apossado de parte do meu coração. Contanto – menciono isso pois você sabe que, por mim, eu nunca chegaria perto de alguém em busca de um autógrafo, não por arrogância, mas pela sensação de me sentir deslocada -, embriagada pela magnitude encantada da cena, não consegui sequer que sua figura viesse à minha mente para que, por você, eu me apressasse para pegar um lenço de papel dentro da minha bolsa e uma caneta e corresse em direção à cantora. E agradeço por isso. Teria estragado o momento dos dois com um pedaço de papel que fatalmente seria perdido anos depois em alguma mala esquecida em alguma mudança da vida, porque você sabe melhor do que eu, Pedro, as paixões aparecem sem avisar e vão embora com uma rajada de vento.
E antes que me esqueça do detalhe final, prevendo seu sorriso de escárnio – eu perdi o meu avião.
Um beijo,
Clara
TS