Miragem

Miragem

As estradas se cruzavam. Lembrou-se de Robert Johnson, o mito do pacto com o demônio e como a extrema dedicação de um homem transformou-se em lenda obscura.

Colocou a mochila azul escuro no chão e sentou-se sobre ela para pensar. Não havia placas na estrada, veículo nenhum parecia transitar naquela rodovia e o mapa havia sido perdido dias antes, durante uma carona que arranjou em uma estrada de Esplêndido Amarante.

Sentada na carroceria do caminhão junto a caixas de toda sorte de frutas, analisava as terras que já havia percorrido antes de deslindar os lugares para onde poderia ir. Descuidou-se, largou o mapa por acidente, esticou-se o mais que pôde para tentar recuperá-lo mas não conseguiu impedir o vento de arrastar o mapa para longe. Quando desceu do caminhão, quilômetros adiante, onde a estrada lhe parecia mais amigável, entendeu poucas palavras do motorista cujo idioma era o castelhano, e esse lhe deu uma sacola com frutas, acenou com a cabeça e sorriu. Ela acenou, sorriu, agradeceu. E ambos continuaram rumo aos seus destinos.

“Pra quê mapa?”, tentou consolar-se, observando a vastidão de terra à sua frente; braços para trás, segurando o tronco, e pernas arqueadas. “Eu nem sei pra onde estou indo”.

Fechou os olhos e deixou a brisa bater no rosto – talvez identificasse em qual direção estava o mar, porque era para lá que precisava ir. Quando chegasse em alguma praia, estaria tudo bem. Mas estava saindo do centro do país e o oceano devia estar muito distante.

Bebeu o último gole d’água, mas não se importou. “Logo algo aparece”, pensou. Buscou seu chapéu dentro da mala e pegou o caderno de capa cor de vinho que havia comprado apenas para a ocasião da viagem; a caneta azul das mais baratas, mais confiáveis – precisava de canetas confiáveis para essa viagem -; e escreveu em letras maiúsculas um grande “PERDIDA”, pegando um terço da folha. Entre parênteses, em letras cursivas menores sob a palavra, um detalhe importante: “nunca me encontrei”.

Olhou para o relógio e então para o sol. Decidiu ir para o leste, que a brisa estava vindo de lá.

– O leste é bom. É de onde nasce o sol. – limpou o pó da mochila, colocou-a nas costas e começou a caminhar – É onde fica o Oriente, com aqueles japoneses educados, os messias e as histórias de cinco mil anos atrás. Mahabharata. O que Krsna disse mesmo para Arjuna em Bhagavad Gita sobre bondade, paixão e ignorância?

Pensou por um instante e a resposta lhe surgiu:

“ ’Transcenda-os e adeus nascimento, morte, velhice e sofrimento’. Não sei se é isso o que eu quero. Aprender é uma morte. E o ter aprendido é um nascer. Eu ainda quero nascer e eu ainda quero morrer. O Universo está em expansão e a aprendizagem é eterna. E não acho que a velhice exista, Senhor Krsna;” – ia falando sozinha, segurando as alças da mochila com as duas mãos perto dos ombros e olhando para o horizonte que nada continha exceto o ludíbrio da existência de um lago – “como ela pressupõe a veridicidade do tempo, é também uma ilusão. Somos cercados de ilusões. Tenho dificuldade para enxergar as realidades. Quanto ao sofrimento…” – refletiu – “A bondade está ligada ao amor cósmico. Se existe esse amor, não há sofrimento pela bondade em si. Há a compreensão. E a bondade será eterna uma vez que a adquirirmos. Ninguém perde algo que aprendeu. Fica cravado no espírito. Encontra-se algo melhor e substitui-se; fica esquecido nos labirintos da mente porque pouco se utiliza. Se houver algo melhor do que o amor cósmico, eu não quero viver para saber”.

Foi vagueando com certo cansaço, mas sem desânimo. A área parecia um deserto, e esperava ver urubus voando ou uma tumbleweed correndo a qualquer momento, como naqueles filmes onde “o” ou “a” protagonista estão perdidos em alguma estrada e, para ilustrar a sensação de se estar só – muito, muito distante de alguém que respira -, o diretor rola para a frente do carro uma dessas plantas secas que formam um círculo e, por um instante, não há nem música, apenas o som do vento. Os protagonistas descem do carro e observam a tumbleweed rolando e a câmera dá um zoom nos seus rostos, que expressam escárnio. Ou então agacham-se no meio da estrada e abraçam a cabeça em posição taciturna. Talvez chorem pelo estarem perdidos e a música volte a tocar. Um violino fino, com um pouco de cello e algumas notas de baixo. “O grave vibra na mente de uma forma insólita e me coloca em um estado de reflexão profunda, como se fosse um mantra”, pensou, “às vezes ele tem que estar lá”.

Mas não era isso que queria sentir. Decidiu ouvir Ishmon Bracey na mente, um dos seus bluesmen preferidos. “Uma gravação antiga de voz e violão é do que preciso agora. ‘Vou caminhando e falando comigo mesma’. E agruras da vida, algumas das quais eu me identifico, e algumas das quais não consigo sentir. Mas posso compreender”.

Chutou uma pedra na rodovia, que saiu do seu caminho.

– Há messias que têm histórias bem semelhantes. Não sei o que aconteceu, mas precisávamos desta mensagem em vários cantos do mundo. É ela que valia. Vidas, mortes. Teatros-escola. Aprende-se da vida com a arte – ia refletindo indistintivamente – hoje melhorou muito. Sou muito otimista. Um hotel seria bom. Como naquele filme do Walter Matthau e do Jack Lemon. Se um dia tiver um filho ou filha, direi a eles que os amo. Carregarei-os durante nove meses, a primeira canção que ouvirão será no meu ventre; seus primeiros abraços e respirações confortáveis serão no meu peito. Eles beberão o leite que meu corpo vai produzir, a partir do meu seio; serei a primeira pessoa que eles vão aprender a reconhecer. Como não amá-los? – e fitou o sol – Está muito calor. Sinto que vou desmaiar.

Não havia onde esconder-se. Pelo menos havia um chapéu. Eram por volta das dez e meia da manhã e ela tinha a promessa de que, quando passasse do meio-dia, o sol ia começar a se pôr. Tinha roupas de frio, caso o clima mudasse. E, até de manhã, provavelmente chegaria em algum lugar, ou encontraria carona.

– Como cheguei até aqui? Não sei absolutamente onde eu estou. Não sei nem se não atravessei a fronteira de algum país, já que aquele motorista falava espanhol. Pensando bem, não sabia onde estava mesmo quando tinha o mapa. Não sabia nem quando estava em casa. Sentava-me na mesa da cozinha com um copo de café perto da minha mão – não gosto de café, mas me mantinha energizada -, colocava o cotovelo sobre a toalha, a mão na testa e perdia o meu olhar através do saleiro quase vazio.

Quando ela se deu conta da presença de um carro, ele já havia passado. Pensou que era ótimo porque agora tinha a certeza de que carros passavam por aquela estrada. Parecia uma caminhonete bem velhinha, fazia um ruído adicional ao de uma caminhonete em bom estado. Esperava que não quebrasse no caminho – seriam dois os perdidos naquela estrada. “Talvez haja alguém mais perdido nessa estrada”, falou consigo, “talvez essa seja a estrada de quem está perdido”. O lago no horizonte era uma miragem como quando se está em um deserto e enxerga-se um oásis, já que suas três garrafas de água estavam vazias. Havia comido todas as frutas que o motorista havia lhe doado, exceto uma maçã. Não podia ver nenhum pássaro ou lebre selvagem, mas talvez estivessem ali – ela apenas não conseguia enxergá-los, como uma alucinaçã́o ao contrário. Não vivenciava o estar sozinha, havia uma multidão, mas experimentava certa liberdade; não para fazer ou pensar no que quisesse, mas para sentir o que quisesse. Ninguém poderia dizer como ela deveria sentir.

“A melhor coisa que fiz foi sair. Sair assim, sem bilhete, sem adeus. Quem me conhece sabia que eu faria algo assim um dia. E vai ficar feliz, se houver amor, porque sabia que, um dia, eu iria embora. Que eu não ia aguentar ficar no mesmo lugar por tanto tempo, quando meu espírito já viajou por milênios nos mais variados lugares deste Universo, e ainda há inúmeros lugares a ir. Haverá novos lugares para sempre. É maravilhoso! Estou cansada. Preciso me sentar”.

Tentou conter-se para agachar lentamente, mas o corpo despencou na terra clara e o pó que levantou do chão caiu exatamente no mesmo lugar, tão escasso de vento o local havia se tornado. Colocou o chapéu sobre o rosto. Seu coração estava batendo rápido, ela não conseguia administrar o oxigênio que estava no ar e a respiração tornou-se ofegante.

“Existem pessoas que rodam o mundo e não se encontram. Vão para Botswana, Finlândia, Índia. Ilha de Páscoa. Tenho vontade de ir à Ilha de Páscoa, mas não para ver os moais. Existe uma atmosfera naquela ilha que me atrai muito. Talvez sejam os rapa nui, eles parecem estar nos seus lugares certos. O estar em um lugar que não é o seu lar e não saber como chegar nele deve causar uma melancolia monstruosa em alguns. Patch Adams, no filme, dizia que as pessoas estão sempre procurando pelo lar. Estão querendo voltar para casa. Acabo de deixar a minha casa, mas de quem era aquela casa? Não era a minha. Não era a casa do Jorge, o gato, também, por isso ele se foi da mesma forma que apareceu. Eu morei lá por um tempo, mas onde eu realmente moro? Jorge terá encontrado sua casa? Eu definitivamente não sei vagar. Meu coração não está aqui. Está muito calor. Talvez eu deva comer a maçã que o motorista do caminhão me deu. Talvez eu deva escrever um livro, porque aprende-se muito sobre quem se é escrevendo as próprias histórias.”

Fechou os olhos sob o chapéu. As pernas e os braços desnudos estavam demasiadamente quentes sobre a terra ardente, que lhe queimava as costas, mas não achava que conseguiria ficar de pé. A mente parecia não querer mais refletir. Percebeu uma canção que soava estar muito distante, como se houvesse um rádio com volume bem baixo, e quis acreditar que fosse uma música das regiões frias do planeta, uma canção nórdica. “Talvez esteja pronta para entrar em Valhalla. Odin há de permitir. Quem sabe o frio me carregue”, desejou, “quero sentir que estou a trinta graus negativos”.

Caída no chão abrasador, de braços abertos e olhos fechados, o chapéu protegendo seu rosto do sol escaldante, tentou reproduzir na sua mente uma sensação de frio intenso. Fê-lo com paixão. Imaginou que estava em meio a uma tempestade de neve, deitada sobre o topo de um iceberg, de braços abertos, sentindo o vento cortando a pele e sendo enevada por flocos gelados, em um dos pólos do planeta. Fantasiou as partículas dentro do seu corpo aproximando-se umas às outras, os átomos comprimindo-se, a água dentro das células transformando-se em gelo. Raios glaciais rodeavam todo o seu corpo; os órgãos, os ossos, imaginava seu sangue misturado a cristais de gelo, placas finas álgidas sob a pele e os cabelos molhados por água gélida.

Ela se encolheu e decidiu descansar.

Quando a encontraram, seu corpo estava parcialmente congelado. Havia uma maçã recém-roída ao seu lado, praticamente tostada pelo sol forte do meio-dia, e um caderno. A última folha dizia, em letras tremidas: “eu me encontrei”.

TS


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