hoje, não

O Beijo (Gustav Klimt)

café, duas da manhã. bem forte, as bolhas formam estrelas no meio do copo, com o reflexo da luz de metade da lua. a janela traz um vento frio que não estava ali enquanto a água fervia – as nuvens parecem ter entrado pelo décimo sexto andar, escondendo-se dentro da cozinha escura. ela o sente deslizando no pescoço, abraçando-a. fecha os olhos, a lágrima foge, chorando por ela. quer deixar lá fora mais brilhante, a nuvem furtiva.

– vai embora, nuvem.

o espelho não reflete, mas os pêlos do braço ficam eriçados e o coração palpita, como se fosse desistir. involuntário, o corpo estremece, e o café quente desliza pela garganta, não serve para aquecer. mas ele embrulha o estômago e confude os sentidos. é, assim, permanecer de pé vinte e quatro horas. dezesseis para cumprir a convenção, oito para mudar de planeta.

como se cansa rápido das coisas. o copo balança, espatifa-se na mesa, violento, o café se derrama. o escuro se torna pálido, as nuvens se espremem, sufocam, oito horas são mesmo melhores de olhos abertos, estômago embrulhado? o pijama mal-aberto, braços trêmulos, o café quente que não engana o cansaço nem o frio, o gosto que amarga a boca durante dias. a mente finge ser passiva para que o corpo não saia tão ferido.

oito para mudar de planeta.

god knows how I adore life
when the wind turns on the shore lies another day
I cannot ask for more
when the time bell blows my heart
and I have scored a better day
well, nobody made this war of mine *

duas da manhã, café bem forte. o vento perturba a janela fechada, gritando, impaciente. amargo.

– vai embora, nuvem.

hoje, não.

*mysteries, beth gibbons

TS


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