Hoje é o dia.
Ela acorda, senta-se na beirada da cama com a luz da lua roçando o rosto e sorri. Ninguém tem que avisá-la sobre a importância daquela noite, o modo como ela acorda sempre diz. Eram raras as vezes que acordava sorridente, sentindo-se leve e todos os órgãos do corpo pareciam estar quentes, aquecendo a pele por fora.
Levanta-se rápido e olha pela janela. Gostaria de ter a visão de um oceano ou de uma montanha cujo cume estivesse coberto de neve, mas tudo que ela vê são pessoas correndo lá embaixo, descontroladas pela noite que começara, prostitutas nas esquinas e gente caída em becos esperando que o dia clareasse.
Aquele era o dia.
Vai ao banheiro, lava o rosto e penteia o cabelo, sem olhar para o espelho. O dia especial pede que ela ao menos o fite, e é o que ela faz, com muito receio. O que vê a faz sorrir, e percebe que a pele brilhante e os lábios naturalmente vermelhos dão a ela um ar especial.
A hora se aproxima. Ela pega o primeiro vinil da fileira na estante. Liga o som bem alto, e a reação vem em minutos, quando alguém esmurra violentamente sua porta. Ela atende, o homem alto de cabelos vermelhos gesticula avisando que são mais de duas da manhã. Ela age com indiferença, fecha a porta antes que o homem vá embora e diminui o volume do som.
Pega uma garrafa de um refrigerante qualquer na geladeira e senta-se no sofá. Sorrindo, fecha os olhos e deixa que o líguido gelado escorra devagar pela garganta, resfriando-a. Olha o relógio, duas e trinta e cinco. Não sabe a exata hora em que irá acontecer, mas sente que está perto.
Um casal vizinho está brigando, gritando alto e cortando a noite em silêncio. Ela o culpa de descaso, ele a culpa de apreço. Uma criança está chorando e, impaciente, alguém cuida para que ela fique quieta. Sons de sirenes de polícia vindos de vários pontos da cidade se fazem ouvir. Ela sorri e em alguns segundos não está mais aqui.
A lua parece estar escondida atrás de alguma nuvem furtiva, a sala está completamente escura. Ela olha a luz vermelha do relógio digital sobre a mesa, quatro e quinze. A garrafa está vazia, a noite segue em silêncio, sem sirenes e pessoas gritando. O toca-disco faz apenas o barulho repetitivo, indicando que as faixas do vinil haviam acabado.
Seu coração está gelado, o vento frio invadindo a sala pela janela a deixa trêmula. Encolhe as pernas para junto ao corpo sobre o sofá de três lugares e abraça-se, deitando a cabeça sobre os joelhos. Uma lágrima vem manchar as costas da sua mão, e ela percebe que seus olhos estão ambos marejados.
Algo deveria acontecer.
TS