A Caminho do Céu

A Caminho do Céu

Paramentado com uma roupa branca especial para desinfecção sobre sua roupa usual, o jovem rapaz entra no quarto e registra o sentimento geral que o ambiente lhe fornece. Tira o seu boné, diz o nome do habitante do quarto: ‘você morreu em trinta e um de março de dois mil e vinte. Estou aqui para organizar os seus pertences’; diz o nome de onde trabalha; seu próprio nome; e termina com a frase ‘estou aqui para fazer a sua mudança final’. O rapaz de não mais do que vinte anos coloca seus fones e seleciona uma sinfonia no seu dispositivo de música – Clair de Lune, de Debussy.

Cenas semelhantes à essa repetem-se algumas vezes em A Caminho do Céu, série da Netflix de 2021. Baseada no livro Things Left Behind (Coisas Deixadas Para Trás), escrito por Kim Sae-byul, a série de dez episódios retrata o trabalho da empresa homônima à série, que limpa as habitações de pessoas que morreram sozinhas.

Godoksa é um termo que significa ‘morrer só’. Não apenas na Coréia do Sul, de onde vem o termo, mas no mundo inteiro, morar sozinho é um comportamento que está crescendo cada vez mais. Por isso, limpar casas de pessoas que morreram sozinhas é uma profissão cujas oportunidades estão aumentando muito, mas o negócio da família Han é um pouco mais cuidadoso: Han Jeong-u (Ji Jin-hee), pai do protagonista Han Geu-roo (Tang Jun-sang), ensinou-o a ler nas entrelinhas dos objetos dos falecidos para aprender a história das pessoas que se foram.

Assim, em uma caixa amarela pouco maior do que uma caixa de sapato, vão guardando de forma zelosa certos pertences que eles percebem terem sido importantes para o ou a falecida(o) – cartas, revistas, um boné, fotos. A ideia é encontrar os familiares e entregar a caixa a quem ficou. Mas essa não é sempre uma tarefa tão simples assim.

Entram aí certas questões sociais, familiares e emocionais – um rapaz que morreu longe da família porque teve que mudar-se para uma cidade distante para sobreviver financeiramente; outro rapaz que, mesmo após a morte, continuou sofrendo preconceito da família por ser homossexual; uma idosa com demência que foi abandonada pela família por questões sobre as quais podemos apenas especular; uma moça assassinada pelo seu ex-namorado; um rapaz levado quando bebê para outro país que acaba sendo abandonado pelos pais adotivos ainda pequeno.

A Caminho do Céu

O tema ‘luto’ também é mostrado em A Caminho do Céu principalmente através do protagonista Han Geu-roo. No decorrer da série, ele tem de lidar com a morte do pai, ocorrida no primeiro episódio. Esse enredo fez-me lembrar de um filme chinês chamado Paraíso no Oceano (Ocean Heaven), com um Jet Li em um papel totalmente diferente do que ele está acostumado a fazer – ele é pai de um garoto autista e precisa ensinar o rapaz a viver sem ele, porque sabe que não há ninguém além dos dois. Preocupa-o que, quando ele morrer, o filho não saiba viver sozinho. Um filme que aborda o autismo de modo muito sensível. E é mais ou menos isso que mostra o primeiro episódio de A Caminho do Céu.

Outro tema tratado de forma muito delicada é o fato do jovem protagonista estar portador da Síndrome de Asperger, que está no espectro autista. Alguém por quem tenho bastante afeição, que é médico psiquiatra, disse-me uma vez que o autismo é um jeito de ser. É um conjunto de características das pessoas. E, enquanto assistia a série, fui lembrando-me do que o médico havia me falado, porque foi exatamente assim que vi o protagonista.

A Caminho do Céu

Geu-roo tem dificuldades e habilidades, como todos nós. Existem níveis de autismo; no caso do personagem, ele é capaz de conviver bem com as pessoas e de trabalhar com dedicação e responsabilidade. Tem uma alta capacidade para fazer certas coisas, como processar e guardar informações. Quanto ao sentir, uma das suas dificuldades, aprendeu da forma como pôde; de forma lógica, com o amor do pai e da mãe. É isso que a série consegue mostrar – autistas são diferentes assim como todos nós temos diferenças de ser. A chave para a convivência é algo que Geu-roo mostra durante toda a série: respeito e compreensão.

Things Left Behind
Things Left Behind

Coisas Deixadas Para Trás, o livro de Kim Sae-byul de onde a série foi baseada, foca muito em mortes de pessoas que eram solitárias e que tinham algum distúrbio mental; muitas eram acumuladoras de objetos, demonstrando depressão e solidão – ’por causa da solidão, algumas pessoas acabam colocando afeição nos objetos, por isso fica difícil jogá-los fora’, disse o autor do livro e um ‘faxineiro de trauma’ da vida real.

Gostaria que, na série, tivessem falado mais sobre saúde mental e sido mais profundos no lidar com certas histórias. Mas a verdade é que dez episódios de cinquenta minutos cada foram pouco para essa série com tantas possibilidades.

A Caminho do Céu

A forma como nos enxergam diz mais sobre os olhos de quem vê do que das nossas próprias maneiras de ser – tudo depende de interpretação. Ainda assim acredito que nossa capacidade de sermos transparentes e honestos conosco e com os outros deve ser valorizada. É triste que não digamos o que sentimos, como somos, do que gostamos, sobre nossas dores e por que fazemos tais e tais coisas, por medo de julgamentos e de rejeição. No fim, quem realmente nos ama não vai deixar de nos amar, mesmo que não concorde conosco ou que tenhamos cometido erros. Há aceitação no amor verdadeiro. A experiência de viver aqui fica mais rica quanto melhor nos relacionamos com as pessoas.

E agora ficam questões interessantes: que história as pessoas conseguiriam montar sobre você vendo os seus pertences? Essa história te agrada? Algo para se pensar.

Playlist do Han Geu-roo na série:

TS


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