Durante uma vida me chamou para conversar. Me chamou para sair, apenas. Respirar outro ar, andar sem rumo, para qualquer lugar, sem se preocupar para onde iria levar.
Eu não fui. Raramente ia. Não que não fossem idéias interessantes mas, dentre a minha cama e um monte de pessoas correndo, barulho e plantas, eu preferia minha cama. Sempre. Quente, aconchegante, segura. Seguro ali. Eu não ia.
Confesso que me diverti nas vezes que fui. Assisti-o dar seu maior sorriso, sua maior gargalhada. Assisti olhos ficarem brilhantes de uma forma que pareciam estar sendo iluminados por algo de dentro do cérebro. Parecia haver algum cabo ligado numa tomada qualquer, levando energia e transformando-a em luz, luz que iluminava seus olhos.
Não posso dizer que não vi os olhos brilharem desse jeito onde eu sempre estivera, deitada na cama. Mas nunca brilhando daquele jeito, nunca como naquela tarde.
Ir com ele era uma responsabilidade estranha. Estar ali, na rua, à mercê de pessoas batendo, carros com pressa, e eu não atravessava a rua sem olhar três vezes para cada lado, mesmo se a rua era de mão única. Certificava a toda hora se eu ainda estava lá, se meu corpo ainda era o mesmo. Se minhas pernas ainda se mexiam, se eu podia pensar. E olhos brilhavam enquanto me assistiam ali, do seu lado. Eu nunca pude me queixar. Mas muitas vezes fui apenas para agradá-lo. Na verdade não era um ato tão difícil de ser executado. Porque vendo-o sorrir, eu tinha a impressão de que ele estava fazendo algo para mim, e não que eu fazia algo para ele. Talvez fosse essa a situação.
Lembro-me que a última tarde que fui com ele foi a mais divertida. Aquela brincadeira de pegar água daquele lago pequeno, e começar uma guerra. Um sol fraco e agradável, os patos ali nos rodeando, enfiando a cabeça na água e tirando rápido, respingando água em nós.
Não havia nada para pensar. Problemas, medos, traumas, nada, nada. Nada se passava em nossas mentes, corríamos um atrás do outro e tentávamos aproximar nossos corpos num abraço apertado como nunca tínhamos feito até então, embora anos de convivência tivessem se passado. Talvez por culpa minha, imagino.
Algumas semanas atrás eu me vi com essa questão novamente. Parecia haver tão pouco tempo, pouca vida. Tive a impressão de que estava acabando. Ele podia ir, e o que eu iria fazer. Amaldiçoar todos os dias em que eu deixei de estar com ele. Iria contar todos os dias que poderia ter gozado da sua companhia, iria contar horas, minutos, segundos. Iria me lembrar do seu cheiro, da sua voz, e lembrar-me que talvez eu pudesse me lembrar melhor se tivesse estado com ele em todos os momentos que ele me convidou para um passeio.
Iria chorar não por ele ter ido, mas por não poder ter estado com ele quando pude.
Uma semana atrás tive um pesadelo. Um sonho, na verdade. Ele estava ali, perto de mim, me assistindo dormir. Quando abri os olhos, ele acenou e deixou o quarto. Deixou o quarto para sempre. Acordei e uma tempestade caía.
Ontem eu estava lá. Muitas pessoas estavam lá. Pessoas que eu nem conhecia. Pessoas que eu nem sei se ele conhecia. Pessoas que entraram sem ser convidadas. E não me importei. As lágrimas delas pareciam se confundir com a chuva fina que caía. O céu estava nublado, mas nenhum trovão se fazia ouvir.
Esperei durante uma meia hora. Algumas pessoas pareciam irritadas por estarem sob a chuva. Mesmo fina, ela parecia incomodar. Começaram a ir embora, lentamente. Algumas pareciam estar chorando ainda, mas eu não pude ter certeza. Chorar por que? Talvez elas também tenham sido convidadas por ele para um passeio, e tenham recusado. Chorar naquele momento, algo como uma redenção.
Eu estava só, afinal. Girei meu corpo, não havia ninguém naquele campo gramado, cheio de montes onde um dia tivera apenas terra. O frio vinha me cortar a pele, abracei-em a fim de me aquecer.
Agachei-me, a terra ainda estava revirada, não havia grama. O bloco de pedra indicava algumas formalidades, mas não pude ler. Lembrei-me da tarde dos patos, brincando na água conosco. Uma vida pareceu retroceder na minha mente. Num instante eu estava deitada numa cama, abraçada a ele, dormindo. E foi a imagem mais bonita que eu consegui separar daquele filme.
Deitei-me ao seu lado, onde ele jazia, e adormeci.
TS