Não ia mais ater-se aos pensamentos que viajavam por onde antes havia notas escondidas nos hemisférios contemplativos de um temor que arrasava a pequena tentativa que era o viver.
Percebeu que as nuvens não eram mais tão alvas como outrora; os céus eram menos anis e as luas, mais cinzentas; no entanto, pesou a observação com o olhar de quem há muito esqueceu de contar os passos rentes ao solo; que caminha nos parapeitos de um cenário luminal, gênese de pensamentos que transmitem ao passeio dos olhos pelas auroras coloridas uma confiança plena na própria intuição.
A avenida estava movimentada como em toda metrópole. Viu uma frase em um muro escrita com tinta preta e lembrou-se de que o povo é mantido desunido e privado de educação propositadamente. Uma garota miúda apareceu na sua visão. Tinha os cabelos pretinhos com pequenos caracóis e vestia uma camiseta grande para a sua idade. Segurava uma boneca pequena no colo, com carinho, porque essa era a sua bebê, e ela queria que estivesse confortável, aninhada nos seus braços. Aquela que parecia a mãe entregava papéis para os motoristas parados no farol. Alguns a ignoravam. Outros pegavam o papel e, na frente dela, jogavam no chão. Uma motorista abriu a janela ao aproximar da mulher e pegou o papel. Agradeceu, sorrindo, e a outra fez o mesmo. Gesto gentil para coroar aquela mãe que trazia sua menina pequena para o trabalho todos os dias para que não ficasse sozinha em casa, porque acabara de ficar viúva e não havia avós que quisessem ficar com a criança; deixava-a com a boneca o dia inteiro sob um toldo de padaria.
O abafar dos momentos enrodilhou-se nos seus braços à medida que ela apartava as desavenças com assovios suaves de melodias das quais o coração se lembrava de tempos dantes, quando o sol não era tão quente naqueles verões onde o mar misturado com a areia fina lhe afogava os sentidos.
Fosse uma nota só, pensou, os cabelos voando ao vento, em harmonia, saberia que onde estava era uma parte de si mesma, e os olhos procuravam algo que ela desconhecia. E era para tanto, porque enxergou onde antes havia apenas outdoors uma grande tela onde um vídeo em preto e branco era transmitido; pessoas felizes – a felicidade deve ser buscada sempre, sempre, porque esse é o sentido da vida, ser feliz, feliz, feliz, e compre este carro, compre este imóvel neste bairro chique, veja este filme engraçado e tome essa bebida alcoólica; nunca, nunca fique triste, porque ser down não é cool.
Nas passarelas e calçadas, dezenas de pessoas com sacolas de todas as cores. Seus andares de fula, sem olhar para quem estava ao lado ou à frente, fê-la pensar que as pessoas eram cegas. Ela era cega. Não estava à parte; era parte. O andar na rua, segurar os pertences junto ao corpo, o observar, era algo que todos faziam dependendo da situação em que se encontravam. Estar no meio da cidade trabalhando acarreta muitos comportamentos. Ali, ela não trombava nas pessoas – ia esgueirando-se por entre corpos tensos e ensacolados por auras cujas cores pareciam esmaecidas naquela tarde de terça-feira. Era a hora dela observar. Mas eles, dentro das suas casas, com seus amores, como seriam?
A chuva veio forte. Jornais, casacos e pastas de trabalho pretas, de couro, eram usados como guarda-chuva, para não molhar cabelos devidamente penteados ou o único casaco ‘bom’ do guarda-roupa. Um rapaz corria, segurando a gravata. O paletó, visivelmente maior do que ele, mostrava que a pressa era para uma entrevista de emprego. Do outro lado da rua, a vendedora de doces, com seu isopor sobre um banquinho branco de plástico, aviava-se para guardar os produtos. A mãe com uma criança de colo e outra pela mão apressava-se sem perceber que o garotinho que caminhava ao seu lado não conseguia alcançar os seus passos, de forma que ia-se arrastando. Ou sendo esquecido.
Chovia.
Abraçou-se, tentando evitar que o frio lhe penetrasse a pele, e seguiu rua adentro. Enviou bons pensamentos ao rapaz da entrevista de emprego – que ele conseguisse o que queria. Que a mãe lembrasse-se dos tamanhos das perninhas do filho. Que a vendedora de doces encontrasse abrigo. Seus cabelos encharcados não voavam mais com o vento, e seus óculos já não permitiam que ela visse o que estava à frente.
Parou, num repente, e fechou os olhos. O som da chuva era bem alto mas conseguiu escutar, ao fundo, um piano sendo belamente tocado. Voltou a caminhar; escolheu uma direção e, a cada passo, o piano soava mais alto. Parou no meio de uma praça, no que parecia ser o ápice de altura que a sonância do piano chegava. Abriu os olhos, mas os borrões que via não se pareciam com um piano e seu ou sua pianista, ou uma vitrola com um vinil que, de alguma forma, tivesse sido colocada no meio da praça; não havia fios, não havia caixas, não havia nem pessoas próximas; naquele momento, com aquela grande tempestade, ela era a única habitante daquele lugar pouco acolhedor.
A sinfonia continuava tocando e agora ela a reconhecia – Schumann, com suas notas doces encavaladas em diferentes tumultos de egos variados -, a tempestade continuava forte, mas agora era apenas o fundo daquela harmonia magistral na sua mente, onde as notas graves do piano, mais intensamente tocadas, davam espaço para que as agudas fossem ouvidas, soando suaves em uma dança que agitava seus neurônios. Deitou-se de costas no chão e abriu os braços; os gritos tornaram-se mais altos à medida que as notas foram ficando mais poderosas, um turbilhão de sinfonias invadindo a praça, seus pés batendo contra o chão enquanto voava com os braços, tal qual anjos deixando impressões na neve, os relâmpagos iluminando a tarde cinzenta de azul e os trovões fazendo suas aparições como se fizessem parte da canção.
E enquanto a música acontecia, a chuva caindo em temporal, o vento levando guarda-chuvas para longe, seus sentidos eram anestesiados. De olhos fechados, apertados, as mãos espalmadas tocando o chão, transformou-se, ela, em tormenta.
TS
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