Friedrich Schulhoff

Friedrich Schulhoff

Como nas muitas outras vezes, do fim do corredor, a silhueta sentada na cabeceira da mesa da cozinha faz-se perceber.

Ele não acende as luzes; apenas anda devagar, vencendo o piso barulhento, criando pouco ruído. Passo a passo, tateando as paredes lisas, esbarrando os dedos em quadros na parede, ouve o tilintar dos pequenos sinos pendurados na parte superior do batente da porta, despertados pela precipitação da sua passagem.

Os raios cortados da luz que invade a janela da cozinha chamam a atenção da figura sentada na cabeceira da mesa. Um copo de água pela metade repousa perto dos seus braços, próximo às suas mãos, com os dedos entrelaçados.

Embora não precise da confirmação visual, ela levanta seu olhar para a pessoa parada na porta. Perde alguns momentos com os olhos fixados nos olhos do outro e, por fim, ao olhar dele desviando do seu, direto para o chão, ela volta a observar o copo. Encosta as costas na cadeira e deixa os braços penderem para baixo.

Num gesto determinado e distante, ele busca a sua mão, forçando-a a levantar e segui-lo casa adentro. Com olhos molhados, ela se permite ser levada. São três as portas deixadas para trás, até que ambos parem. Ele oferece sua passagem para a moça, enquanto empurra a quarta porta, abrindo-a com cuidado.

Os objetos se confundem, e ela pensa por um momento que caminhar por ali, no escuro, seria tarefa difícil, porém possível. Como tudo ela acredita ser. Saber da existência da possibilidade, porém, não seria alívio suficiente enquanto uma maneira de realizá-la não fosse descoberta.

A luz é acesa num repente. Ela não esfrega os olhos, nem os fecha por um simples instante.

Ele segura sua mão e a leva para o centro da sala, em frente à escrivaninha. Esticando o braço e o dedo indicador, em movimento circular e em silêncio, aponta para os quadros em todas as paredes.

Um a um, ela analisa rapidamente os vários pedaços de papel emoldurados, indicando estudos em alguma área jurídica.

No centro da parede da porta, o retrato de Friedrich Schulhoff, figura histórica reconhecida por sua sabedoria e bravura perante a sua popular história de luta.

O homem se distancia dela e aponta com veemência para o retrato na parede. Balança o punho cerrado no ar freneticamente, com os lábios e os olhos apertados. Em tom resoluto, quase agressivo, cita uma das mais célebres frases ditas pelo personagem do retrato.

Após a última palavra, ela volta seus olhos para a figura do quadro que, muitos anos atrás, com sangue nas veias e ar nos pulmões, parecia julgar sem coração. Em sua presunçosa decisão ante a análise apenas do ângulo mais claro dos fatos, apontava os homens e os classificava de covardes, desmoralizando as suas batalhas silenciosas, deixando na história o seu próprio exemplo de coragem como o único tipo nobre do qual se deve seguir.

Num ímpeto de angústia, ela anda apressadamente até o homem e mostra-lhe as mãos manchadas de tinta. Esfrega-as em cólera e espalma-as novamente em frente ao homem, com o rosto enrubescido e o pesar de entender que não verá as mãos limpas novamente.

Assombrado, ele perde alguns segundos mirando as mãos exibidas na sua frente. Em seguida, faz uma tentativa de trocar olhares com a moça, esperando transformar sua expressão de surpresa em compaixão antes que os olhos dela o fitem; ela, porém, tem o seu olhar voltado às próprias mãos, em esclarecimento mudo, dando com o semblante perturbado ainda mais ênfase às palmas manchadas, e às manchas que começam a se alastrar pelos próprios braços.

Enfim, vagarosa e cuidadosamente, a moça fecha os punhos, acalmando a rigidez dos músculos. O homem a assiste suspirar profundamente, girar os calcanhares e caminhar em direção à porta, a fim de deixar a sala, enquanto o vestido florido de tons claros encosta no chão, arranhando levemente os tacos de madeira.

Embora não possa ouvi-la, ele adivinha o seu destino: a cozinha. Ela provavelmente senta-se na mesa, estica os braços, entrelaça os dedos, fecha os olhos ou perde o olhar no copo de água posicionado quase no centro do móvel.

Ele estende suas próprias mãos sob seus olhos e observa as manchas escuras de tinta cobrindo a sua pele, da sua longa luta de homem forte e destemido.

TS


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